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As duas magníficas faces da Festa do Divino em São João del-Rei


O calendário cultural-religioso de São João del-Rei é tão vasto que grande parte dos são-joanenses, quando conversam sobre esse assunto, costumam citar apenas as festas que são mais grandiosamente tradicionais, como a Festa de Passos, a Semana Santa, a Festa da Boa Morte e as procissões de Nossa Senhora das Mercês, Nossa Senhora do Carmo e Nossa Senhora do Rosário.

Mas na verdade a fé são-joanense é marcada por muito mais eventos, entre os quais as celebrações de Pentecostes, cujo ponto máximo acontece no sétimo domingo depois do Domingo da Ressurreição. Na verdade, a festa começa muitos dias antes, com novenas e vários outros ritos muito peculiares.

Em nossa cidade, a Festa do Divino, considerando seu modo de expressão, tem duas faces, ou melhor, dois formatos, diferentes na linguagem  estética, mas igualmente bonitos e importantes: o de manifestação popular, sediado na paróquia de Matosinhos, e o de liturgia influenciada pelo barroco, promovido pela Paróquia do Pilar.

O primeiro é o Jubileu do Espírito Santo - uma herança da segunda metade do século XVIII, resgatada com muita honra nas últimas décadas do século XX e que chega aos nossos dias com grande dinamismo, entusiasmo e vigor. Lembrando os tempos passados, sua marca registrada é a presença das folias, grupos de congado e outras formas populares e espontâneas de expressão, muito ricas em seu ritmo marcante, suas cores vibrantes, sua estética telúrica e sonoridade cordiosa, como um coração batendo forte na Praça e nas ruas do bairro de Matosinhos. No entardecer do sábado, essa energia chega até o centro histórico em um majestoso cortejo, que parte da igreja de São Francisco de onde sai, em liteira carregada por soldados do Exército, Santo Antônio, que é o imperador perpétuo do Divino Espírito Santo.

Na Rua da Prata, na Ponte do Rosário, nas imediações das igrejas do Rosário, do Pilar e do Carmo, o movimento dos bares se surpreende, o povo para pra ver. Algumas casas ao redor do Rosário põem toalhas vermelhas nas janelas e na Rua da Cachaça, antigo 'antro' do Pecado e hoje Rua da Alegria, as casas enfeitam suas fachadas e até mesmo o chão, com folhas e flores.

De tempos em tempos e de espaços em espaços, mais folias vão se juntando ao cortejo, que percorre um roteiro e um território ora então sacralizados, pontuados por cruzeiros, grutas votivas, igrejas e capelas ou simplesmente referências urbanas populares, até chegar ao Santuário de Matosinhos, que é a sede de tudo, e tem inclusive um coreto para este fim. Durante todo o domingo, o bairro de Matosinhos e a Vila Santa Teresinha são o próprio império do Divino, com sua nobilíssima e coroada corte, seu séquito ininterrupto de folias e congadas, em movimento contínuo de cantoria e dança, até que a noite traga a procissão e a despedida: "agora só no ano que vem!", que é como, pesarosamente, se despede ao fim de cada festa anual religiosa ou profana em São João del-Rei.

A Festa do Divino Espírito Santo na capela da Rua das Flores também é intensa, mas ocorre em outra frequência. Dura onze dias, mas é centrada no ritual interno, onde o tom culminante é o dos sinos que, do alto da torre, na posição do mirante de uma fortaleza de onde se vigia toda a cidade, tocam demoradamente ao meio-dia, às três e às seis horas da tarde, depois ao final de cada novena, para lembrar que amanhã tem mais.

Na noite do sábado, véspera do grande dia, a Vigília de Pentecostes é uma cerimônia surpreendentemente bela, diferente em tudo do que é comum. É anunciada pelos sinos e por um foguetório, mas de início a nave do pequeno templo está na penumbra, iluminada apenas pelas velas do altar principal. Tudo seria silêncio se a capela não estivesse preenchida pelo som de um órgão denso, soprando música que se juntou a um canto solo masculino grave, como deve ter sido a voz de Deus antes de tudo, ordenando que a luz se afastasse das trevas, e que a terra se separrasse das águas, na criação do mundo.

Nesse ambiente, acendeu-se o fogo  em brasas. no centro da capela-mor e as labaredas lembraram aos crismandos e padrinhos em vigília as línguas de fogo que desceram sobre os apóstolos com os dons do Espírito Santo. Tudo estava então preparado para o Dia de Pentecostes, quando a Rua das Flores ganhou ainda mais vida e mais cor. Muitas casas se enfeitaram com bandeiras vermelhas, pombinhas brancas, jarros de flores de maio, balões, lanternas artesanais com velas enfileiradas ao longo da calçada, alegria e beleza que se repetiram na colonial Rua Santo Antônio.

Banda de música, carrinho de pipoca, de algodão doce, sinos, foguetes, fogos de artifício, confrarias com seus 'hábitos', irmandades com suas opas, lanternas, tochas, velas, os andores, os padres, o pálio, gente  alegre, rezando e cantando. A procissão também fez seu percurso e seu roteiro pelo território ora então sacralizado. Subiu a ladeira da Muxinga, passou em frente ao casarão do Presépio, ao lado dos dois portões dos cemitérios e, voltando ao seu ponto de partida, após a bênção do Santíssimo Sacramento, o povo de cá, entre alegria e pesar, também se despediu:"Até o ano que vem!"

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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa

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