Às nove da noite da sexta quinta-feira da Quaresma, o sino dos Passos fez dobres
incomuns. Incomuns não fosse para informar à população
são-joanense que naquele momento estava se encerrando a celebração do
último dia do Setenário das Dores. E também para lembrar que o dia
seguinte (sexta sexta-feira da Quaresma), em São João del-Rei é Sexta
Feira das Lágrimas, ou da Soledade. E que haverá procissão, de Nossa Senhora
das Dores, realizada pela Irmandade do Senhor Bom Jesus dos Passos.
Mal o sino tocou o último dobre e na Matriz do Pilar
- fechadas todas as portas - logo as irmãs e os irmãos dos Passos iniciaram providências e preparativos
para a nobre e austera procissão da noite seguinte. A imagem, descida do Calvário montado no altar-mor pelos homens que a levam nos braços para a nave central, é arrumada no
andor - as mulheres conferindo com desmedido zelo o vestido roxo, a capa cor da noite, as
joias, espadas e o diadema de estrelas. E aos poucos, mas com muita devoção, vão colocando pequenos galhos da arnica que,
colhida na Serra do Lenheiro, será muito disputada ao final da procissão, tanto
devido à força devocional da fé curativa quanto ao poder de suas propriedades terapêutico-medicinais.
Enquanto isso, na sacristia, os homens montam o setecentista pálio vermelho, no
qual reluzem, bordados a fio de ouro, um céu estrelado, suplícios e estigmas da
Paixão do Senhor do Passos. E, por fim, revisam as lanternas e tochas, verificando
se as velas estão no tamanho exato para durar as luminosas horas de todo o
trajeto. Seguindo-se a isto, desfolham rosmaninho no chão da Matriz do Pilar,
espalhando pela nave perfume tão próprio da Quaresma de São João del-Rei. Às vezes coincide de o relógio da igreja estar batendo meia-noite e uma Encomendação de Almas estar terminando ali, cantando "Senhor Deus, misericórdia!", o seu misterioso percurso.
Tudo pronto, logo no começo da manhã da sexta-feira, as portas da Matriz
se abrem, para o povo são-joanense, durante todo o dia, fazer visitas, orações, pedidos e reverências a Nossa Senhora das Dores. Desde cedo e por várias vezes, o
sino dos Passos gira dobres lentos, longos, demorados, compassados e
pungentes. Repetindo linguagem antiga, lança pelos ares avisos sonoros de que à
noite haverá procissão, motetos, lembranças, saudades, lágrimas e bênção com a
relíquia do Santo Lenho.
Logo depois que o sol se por, novamente o
espírito de São João del-Rei, religiosamente, se perturbará, em silêncio, para dentro da própria alma.
Será a noite
da Soledade de Nossa Senhora,
marcada pela Procissão
das Lágrimas, nome quase em
desuso, mas muito adequado para o que se rememora: a volta da mãe de Jesus, do sepulcro do filho morto, para casa, relembrando todo o sofrimento do Salvador e vivendo, resignada e na plenitude, a própria dor.
O andor de Nossa Senhora das Dores que
percorrerá as ruas do centro histórico de São João del-Rei é absolutamente austero, quase árido, desprovido de qualquer
enfeite ou adereço. Sua sanefa é de saudade e suas palmas são de suspiro,
ausência e desolação.
Nesta procissão Nossa Senhora vai envolta
apenas em solidão e dor, parando contemplativa nas cinco
capelas-passo da Paixão. Em cada uma, a Orquestra Ribeiro Bastos canta motetos longínquos, vários deles inspirados nas lamentações do profeta Jeremias.
O mistério é tamanho que, quem se compenetrar, terá a impressão que o canto não
quer transpassar o silêncio nem se espalhar pela noite.
Muito envolvimento, respeito e fé.
As celebrações dos Passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Setenário das Dores e
a Semana Santa de São João del-Rei ainda se fundamentam em religiosidade, emoção e sentimento.
Antes de se recolher por mais um ano na catedral basílica de Nossa Senhora do Pilar,
Senhora das Dores para diante do grande oratório da Piedade e, como a mirar-se a si própria em espelho imaginário, contempla
a outra imagem, que está no alto do altar, ao pé da cruz, com Cristo morto
em seu colo. Esta, portuguesa, veio para São João del-Rei no século XVIII.
Até alguns anos
atrás, somente na Sexta Feira
das Lágrimas o Passinho da Piedade era aberto. Depois, passou a ficar aberto também, para contemplação de fiéis e turistas, na Quinta Feira Santa
e na Sexta Feira da Paixão. E nos tempos da pandemia, toda sexta-feira, quando, de quando em quando ganha de quem passa um sinal da cruz e uma Ave-Maria.
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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa
Vídeo Luiz Fernando Zanetti (You Tube)
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