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Quaresma de histórias, memórias, lembranças, quebrantos e encantos em São João del-Rei


Hoje pouco menos, antigamente a Quaresma era um tempo mágico em São João del-Rei. Dias e noites de grande temor, recato e recolhimento, marcados por longos jejuns e principalmente pela abstinência de carne, de todo tipo, nem que fosse apenas na Quarta Feira de Cinzas, em todas as sextas-feiras, na Quarta Feira de Trevas e na Sexta Feira da Paixão. Tempo de silêncio profundo. Os clubes dançantes interrompiam os habituais bailes de todo sábado e as pessoas continham as gargalhadas, evitando até ouvir a velha e nostálgica Rádio São João del-Rei  em volume mais alto. Pode parecer exagero, mas há uns trinta, quarenta anos atrás, era desse jeito, assim!

Se por um lado era um tempo nebuloso e de obscuridade, pelo sofrimento, paixão e morte de Jesus Cristo, por outro era um tempo marcado por certa desordem, como tentação provocada pelo Espírito do Mal. Ocorrências misteriosas, comportamentos inexplicáveis, ameaças ocultas, destemperos, acontecimentos insuspeitáveis, muitos deles envolvendo animais tanto dóceis quanto peçonhentos, trilhas do campo, lua cheia, ruídos desconhecidos, vozes estranhas, chamados anônimos, incêndios e afogamentos. Tudo isto povoava e provocava o imaginário popular. Para as crianças, sacis, lobisomens, mulas sem cabeça podiam estar no silêncio  e no ar parado de cada canto escuro.

Como antídoto a isto tudo, só sacrifício, penitência e oração, apesar de que alguns amuletos, patuás e outros talismãs bem que também eram ostentados para afastar o Senhor das Trevas e seus malefícios. Por isto, era tão comum encontrar crucifixos nas paredes da cabeceira das camas, terços pendurados às vezes até no pescoço, velas acesas nos quartos, vidros de água benta, principalmente às 3 horas da tarde das sextas-feiras, ambientes perfumados e embaçados pela fumaça de incenso queimado em brasas.

Hoje a tecnologia devassou tudo. Devastou tudo. Objetivamente, quase em mais nada há segredo ou mistério a se ver. A não ser na recordada lembrança dos velhos são-joanenses e também no insuspeito pulsar do coração dos novos, que pressentem o encanto da riqueza que a imaginação criou e que a inteligência transformou em sabedoria, em crença e fé!

Sentimento que sobrevive e cotidianamente, se reaviva e se repete no "nome do Pai", que muita gente faz na rua, em movimento, quando sai de manhã para o trabalho, ou quando passa diante de uma igreja, de um cruzeiro ou de um cemitério. A fé remove montanhas. Menos as montanhas de Minas!





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Texto e foto: Antonio Emilio da Costa

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