São João del-Rei vive a olhar para dentro do peito e, mirando a própria alma, a trazê-la em essência sempre para a superfície. Resgatar, revelar, renovar, reinventar, projetar e eternizar, mantendo-a assim viva e pulsante.
Isto foi o que mais uma vez se percebeu recentemente, no I Encontro de Verônicas que homenageou a maestrina Maria Stella Neves Valle. Em tudo singular, Verônica é um dos mais importantes ícones da religiosidade e da tradição barroca de São João del-Rei. Sua existência dura poucas horas de uma noite tenebrosa quando, na Sexta Feira da Paixão, ela canta por sete vezes uma lamentação milenar, enquanto mostra um sudário alvo, estampado em vermelho com a face ensanguentada de Cristo.
Rio frio de vento e silêncio transpassa os largos, esquinas e encruzilhadas onde ela canta. Ninguém fala palavra, criança não chora, mal se respira ou suspira. Prende-se, ou perde-se, o ar. Coberta de preto até a cabeça, nem mãos à mostra, encobertas por luvas também pretas, Verônica personifica a própria noite. É a memória antes da lembrança. Não há são-joanense que não a conheça, que não venha de longe nem se esprema em multidão para vê-la e ouví-la. Que não a respeite quase como a Senhora das Dores e o Senhor Morto.
No encontro que este ano aconteceu pela primeira vez, Verônica saiu da Sexta Feira da Paixão para uma quinta-feira de junho. Se multiplicou em várias. Cantou o mesmo lamento na criação de vários compositores barrocos. Eram as mulheres que já foram Verônica nas Semanas Santas de São João del-Rei. Para vê-las, o sobradão do Memorial Dom Lucas Moreira Neves e a rua em frente à escadaria e adro da Matriz do Pilar estavam tão cheios de gente que lembrava mesmo aquele território na noite de Sexta Feira da Paixão.
O folclorista Ulisses Passarelli - um dos maiores estudiosos e conhecedores modernos da cultura popular de São João del-Rei e da região - assim descreveu o Encontro:
"Com pontualidade britânica, às oito em ponto Padre Ramiro abriu o Primeiro Encontro de Verônicas, com casa cheia e rua abarrotada de gente. O povo apinhou nas janelas porque não cabia mais no lado de dentro do Memorial.
Evento criterioso, levou de viva voz muita informação histórica sobre a origen das verônicas, significados, multiplicidade musical sobre a mesma letra do canto. Ouviu-se vozes belíssimas em interpretações impecáveis, ambientadas no casarão colonial, com cheiro de rosmaninho e manjericão que um anjinho de procissão distribuía aos que ali estavam.
Todas as verônicas, vestidas a rigor, cantavam do alto da escada, enquanto vagarosamente abriam a toalha alva para expor a face ensanguentada do Divino Mestre.
Evento único. Inusitado. Notável. Que venha o segundo. O terceiro. O quarto..."
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