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20 de novembro: São João del-Rei tem consciência negra



Não é verdade dizer que em São João del-Rei não existe preconceito racial. Os negros de nossa terra que aqui já sofreram - e os que ainda hoje sofrem - discriminação desmentiriam, testemunhando em contrário. O modo como foi constituída a sociedade são-joanense, nas origens do século XVIII, quando o ouro qual gabiroba era catado à mão nas encostas da Serra do Lenheiro, contribuiu para que em São João del-Rei as questões raciais fossem muito próprias.

Como em todo arraial nascido da mineração do século XVIII, a população era formada por pessoas de todos os níveis, classes e procedências, principalmente de aventureiros que, sem eira nem beira, viam no Eldorado das Alterosas a grande oportunidade de enriquecimento. Inclusive negros. Isto forjou uma sociedade mestiça e moldou um espírito coletivo favorável à diversidade, ao sincretismo, à tolerância e à miscigenação.

A verdade é que, desde aquela época, de algum modo o negro estava e está inserido na vida de São João del-Rei, muitas vezes como protagonista na escrita de nossa história. Tanto que, já em 1708, fundaram no Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes a primeira Irmandade do Rosário da Capitania de São Paulo e Minas de Ouro. No Brasil, só havia uma irmandade de negros com esta invocação no Rio de Janeiro, que era a sede do governo português em nosso país. Deste modo surgiu a primeira irmandade são-joanense, instituída cinco anos antes da Irmandade do Santíssimo Sacramento.

Daí por diante, os negros continuaram demonstrando seu valor e enriquecendo a cultura, as artes e a economia de São João del-Rei. Os compositores coloniais são um ótimo exemplo, pelas obras imortais que produziram e que até hoje ouvimos nas tradicionais celebrações religiosas são-joanenses. Não só os homens negros, mas também as mulheres se destacaram, como a negra Maria Viegas que, na metade de século XVIII, formou um rico patrimônio e, inclusive, deu educação primorosa a um filho, que se tornou sacerdote. Seu testamento, recentemente restaurado e digitalizado pelo órgão local do Ministério da Cultura, prova isto.

Não apenas nas artes e como artífices os negros contribuíram para a história são-joanense. Também aqueles que trabalharam arduamente e sucumbiram pela violência e pelos horrores da escravidão deram, muitos com a vida, sua parcela para que São João del-Rei fosse e seja o que é.

Hoje, de modo geral, verifica-se grande integração e harmonia entre negros e brancos. Numa visão panorâmica, sequer se percebe, nas relações sociais e convívio, esta distinção. Mas não se pode negar que, herança de alguma ignorância do passado e por lamentável desinformação quanto aos valores que regem o tempo presente, ainda persistem, em alguns setores e em determinadas circunstâncias, preconceito de cor e discriminação racial quanto aos negros em São João del-Rei.

Mas estes, por sua vez, cada vez mais evoluem, se organizam, mergulham em busca do conhecimento profundo de suas origens etno-histórico-culturais para se fortalecerem como seres e indívíduos. Por meio da educação, da informação e da permanente atualização, buscam encontrar o caminho que lhes proporcione amplamente, a todos os descendentes dos homens negros escravizados, visibilidade social, respeito e cidadania.

A presença dos santos negros, como Santa Efigênia, São Benedito e Santo Antonio de Catingeró e Santo Elesbão, nos altares das igrejas das irmandades do Rosário e das Mercês e da Ordem Terceira do Carmo, cuja origem é predominantemente branca e abastada, mostra que isto é possível. Sem perder de vista que a santidade do negro de hoje não é abrir mão de sua identidade cultural, mas sim manter-se íntegro, capacitar-se com conhecimento e instrumentalizar-se com formação e informação para abolir, de nosso meio, toda forma de preconceito e discriminação.

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