Pular para o conteúdo principal

Cristo Redentor de São João del-Rei. Retrato de saudade e domingo azul na infância distante



Imagine tempos atrás São João del-Rei numa tarde fresca, clara e azul de domingo. Depois, imagine um almoço pródigo de macarronada vermelha de cebola e massa de tomate, muito queijo curado ralado, tutu de feijão feito de farinha de fubá torrado, frango caipira refogado em pedaços, Mirinda, Crush ou guaraná. Sobremesa, arroz doce com açúcar queimado e bastante canela, doce de figo, de mamão, goiabada cascão ou doce de leite. Menos o primeiro, todos os outros com fatias de queijo fresco.

 Depois, cruzar com a família o Largo do Carmo, subir a sinuosa e comprida ladeira do Senhor dos Montes e, de vez em quando olhar para trás, para ver ficando miúdas as cruzes, as torres, as igrejas, a  estação ferroviária, os jardins coloniais, os quintais. Ouvir agora como a sussurar os toque miúdo dos sinos, o apito da Maria Fumaça ficando fraco e o silêncio, pouco a pouco, ir tomando conta de tudo em volta, para que apenas as vozes das crianças dessem ritmo, som e movimento às nuvens brancas que insistiam no céu.

Seguir o caminho de casas humildes, muros baixinhos de pedra - sacadas minerais para buganviles coloridos, vermelhos bicos-de-papagaio, verdes ora-pro-nobis, róseaestreladas saborosas, ipês amarelos, até o pé do cruzeiro de estigmas Paixões, até o face-a-face com a capelinha humilde, protegida pela Serra do Lenheiro, para não fugir, acanhada. Dali dobrar à direita e, mais alguns passos, deparar-se com os balaústres  que circulam o Cristo Redentor.

Sob a sombra de seu braço estendido, e de sua cruz- agora como um escudo - descascar laranjas em espiral, saboreando o doce acre de seu suco, de seu sumo e de seu perfume.  Desenrolar das manivelas pipa e papagaio; coloridos artefatos de vareta e papel que se entregavam ao vento, no desejo de, por um lado, voltar para a cidade, pelo outro, atravessar a montanha e subir para o céu do nunca mais. Era assim, com certeza, que uma criança são-joanense,naquela época, descreveria em redação escolar como eram os domingos em família: um piquenique no Cristo Redentor.

Por muitas décadas orgulho de São João del-Rei, a imagem do Cristo Redentor subiu ao seu pedestal no dia 13 de agosto de 1942, ou seja, há 71 anos. Antes disto, por alguns dias, ficou exposta na Igreja do Carmo - templo que guarda o Cristo Inacabado e de artista desconhecido, cuja face serviu de inspiração para o rosto do novo monumento.

Na hora em que, a céu aberto, o Cristo Redentor subiu ao céu, e foi posto sobre uma elegante coluna de pedra sabão azul, em sua homenagem todos os sinos da cidade dobraram e repicaram. Cessada esta saudação, o orador Heitor da Costa e Silva, falando para os presentes, assim descreveu o novo cidadão são-joanense, a partir de então um ícone de São João del-Rei:

"A imagem que hoje se ergue no Alto da Boa Vista reproduz, no bronze imperecível, os mesmos traços fisionômicos  que o buril do desconhecido e insígne artista esculpiu no lenho que se acha em condigna urna na Sala do Definitório da Igreja de Nossa Senhora do Carmo. Está vestida de túnica e manto real como a do Cristo do Corcovado, em grandes panejamentos onde domina o caráter arquitetônico. Sobraça a Cruz gloriosa da ressurreição, a seu lado esquerdo, enquanto a mão e o braço direito, abertamente, se estendem em bênção à cidade e e ao seu povo. É modelo original, concebido e executado  com características históricas e locais."

...........................................................................
Fonte: CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei - Volume II, segunda edição revista e aumentada. Imprensa Oficial de Minas Gerais. Belo Horizonte, 1982

Informante: CarmenTrindade da Costa (São João del-Rei, 1928)

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j