Pular para o conteúdo principal

Corpus Christi em São João del-Rei: São Jorge, muitas oitavas de ouro e o estandarte real


Antes mesmo que maio termine, São João del-Rei já vive os ares do magno dia de Corpus Christi. Pompa, brilho, poder, simbolismo, grandiosidade e devoção contornam a Serra do Lenheiro, atravessam seculares pontes de pedra, correm ruas pés-de-moleque, largos, becos e ladeiras. Desde sempre é assim.´Era assim que mandavam "as ordens de Sua Majestade Real".

Por se tratar da mais importante festa religiosa que nos séculos XVIII e XIX era realizada sob os auspícios da Câmara da Vila de São João del-Rei, sua preparação envolvia diversos atos oficiais, documentos públicos,  propinas e doações anuais,em muitas oitavas de ouro, como as doações de 1738 e 1747: 64 oitavas. Até a música a dois coros, executada durante o cortejo sacro, e as pessoas que carregavam "as varas do pálio, sob o qual ia a custódia sagrada" eram definidas pela Câmara.

Naqueles idos, pelo simbolismo e imponência de sua iconografia, ligados à força, luta, vitória, domínio e poder, São Jorge era figura obrigatória nas procissões são-joanenses de Corpus Christi. Nas primeiras décadas do século XVIII, ele vinha "vivo", personificado em um homem portentoso, vestido a caráter como guerreiro, com armadura, capacete, capa, lança, espada e escudo. Depois, foi substituído por uma imagem de madeira maciça, montada sobre um cavalo.

Segundo o pesquisador e historiador Sebastião Cintra, em 1821, "a Cãmara determinou ao escrivão que fornecesse ao alcaide os nomes dos juizes de oficíos - ferreiros, caldeireiros, latoeiros, ferradores. carpinteiros, pedreiros e serralheiros que, avisados com antecedência, deveriam aprontar o Estado de São Jorge para a procissão de Corpus Christi. Os mestres de ofício com loja aberta ornavam e vestiam com pompa e magnificência a imagem de São Jorge, que sairia na referida procissão."

 Pendão importante a puxar o cortejo, oficializando-o também como expressão do poder estatal, era o estandarte da Câmara, que foi renovado na procissão de 1823 - a primeira a se realizar depois do Grito do Ipiranga. Conforme Termo de Vereança daquele ano, "Acordaram concorrendo o corpo da Câmara à Igreja Matriz para acompanhar a Procissão de Corpus Christi, como é de obrigação conforme as Ordens, e tendo-se abandonado o antigo estandarte, e feito novamente o estandarte em que se acham impressas as insígnias e armas deste opulento e vasto Império do Brasil, foi pelo reverendo pároco solenemente bento este mesmo estandarte, e com ele pela primeira vez acompanhou a mesma Câmara a solene procissão em forma de estilo."

Em 2012, a data religiosa católica de Corpus Christi é mundialmente comemorada no dia 7 de junho. Em São João del-Rei, a procissão, acompanhada de música a dois coros, como nos tempos coloniais, e da banda, percorrerá o mesmo antigo trajeto de ruas enfeitadas por tapetes de flores. Nas sacadas e janelas dos casarões setecentistas, colchas rendadas oscilarão ao vento frio que anuncia o inverno. Por três vezes, parará diante das mais importantes igrejas barrocas do centro histórico. Nestas pausas, após a bênção sacerdotal e o canto do coro da Orquestra Ribeiro Bastos, a Theodoro de Faria executará com grande vigor o Hino Nacional Brasileiro, que finaliza com o toque entusiasmado dos sinos.

De uns tempos para cá, não sai mais o estandarte da Câmara, mas a bandeira do Brasil em destaque se projeta nas janelas das igrejas e nos altares. Sinal de que, em São João del-Rei, Corpus Christi é uma celebração barroca-religiosa-oficial-artística-militar-nativista-pública-e-nacionalista.

Veja, no vídeo abaixo, antigo registro da saída da procissão de Corpus Christi da Matriz do Pilar de São João del-Rei.



Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j