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Sexta Feira da Paixão - o dia maior da Semana Santa de São João del-Rei


Quem puder, não perca. Reserve todo o dia da próxima sexta-feira (22 de abril) para acompanhar as cerimônias religiosas que serão realizadas na Matriz do Pilar de São João del-Rei. Será uma imersão no século XVIII, transitando por um universo de religiosidade, fé, arte, emoção e cultura.

As celebrações começam com o Ofício de Trevas, a partir das 8h30. Muito semelhante ao realizado na noite da Quarta Feira de Trevas, consiste no canto orações, salmos e leituras e responsórios, em ritmos musicais que alternam canto gregoriano, música barroca e um ritmo próprio, só existente em São João del-Rei. O Ofício de Trevas dura mais de duas horas e o relógio é um grande castiçal triangular de 15 velas, que gradativamente vão sendo apagadas uma a uma, à medida que a cerimônia vai se completando, até que, atingida a total escuridão, a Orquestra Ribeiro Bastos canta o Christus factus est, o bispo reza o Pai Nosso e o público presente bate com força os pés no chão.

Pouco depois do meio-dia, começa o Sermão das Sete Palavras, no qual  o sacerdote celebrante discorre sobre as sete últimas palavras ditas por Jesus na cruz e a orquestra executa, para cada uma, um moteto sacro e uma composição barroca relativa ao que o padre dirá. O Sermão das Sete Palavras é feito com a igreja às escuras, o que aumenta ainda mais a concentração dos fiéis e o tom dramático da pregação, geralmente cheia de interjeições e exemplos, que vão do Velho Testamento até os dias atuais.

Findo o Sermão das Sete Palavras, imediatamente começa a Liturgia da Palavra, cujo ponto alto é o Canto do Evangelho, feito teatralmente por três padres, com a participação da Orquestra Ribeiro Bastos. O final deste canto é enternecedor, narrando a descida do corpo de Jesus da cruz, seu embalsamento e sepultamento.

Sensibilizado pela Liturgia da Palavra, os fiéis participam da Adoração da Cruz - um momento de grande sentimento e emoção, que é marcado, inclusive, por uma versão especial do Canto da Verônica, quando a personagem, à frente do altar, canta seu lamento e abre o Sudário, mostrando para todos a estampa da face ensanguentada de Jesus. Nesta hora, entra na capela-mor um grande crucificado coberto de roxo, é posto no chão e por diversas vezes levantado ao alto para que uma parte do seu corpo seja descoberto. Primeiro o rosto, depois o braço direito, em seguida o esquerdo, finalmente o corpo e os pés.

A cada um destes quatro atos os padres entoam uma antífona e a orquestra responde Venite Adoremus, chamando o povo à adoração. Então a cruz percorre deitada toda a igreja, para que os fiéis respeitosamente lhe beijem e toquem. É um momento de grande comoção, no qual a emoção corrente transforma a imagem do crucificado em um corpo sem vida, objeto de grande amor humano, não sendo difícil para os fiéis, por suas próprias dores e aflições, ver-se no lugar do crucificado e vivenciar não só a paixão e a compaixão, mas também a auto-compaixão. O sentimento é tão forte que sente-se frio nesta hora e  profunda solidão na alma. Os únicos sons que se ouve são moedas caindo nas salvas (bandejas) de prata e as músicas barrocas cantadas pela Orquestra, compostas no século XVIII porconsagrados autores de São João del-Rei e da região. Em geral, lamentos que falam do sofrimento de Cristo, das dores de Nossa Senhora, da traição de Judas.

Encerrando a programação da tarde no interior da Matriz do Pilar, é distribuída a comunhão, enquanto a Orquestra Ribeiro Bastos executa as peças finais compostas para as cerimônias internas da Sexta-Feira da Paixão. Nesta hora, o entardecer já está adiantado. Os últimos raios de sol escapam por cima da Serra do Lenheiro, o Calvário já está montado na escadaria das igreja das Mercês e a grande lua cheia desponta do lado direito da igreja de São Francisco.

Ouça, abaixo, neste vídeo copiado do Youtube, uma peça musical executada durante o Sermão das Sete Palavras em São João del-Rei na Semana Santa de 2010.


Neste segundo vídeo, veja em apresentação de fotos diversos aspectos da Semana Santa são-joanense, do Ofício de Trevas à Procissão do Enterro, inclusive os belos tapetes artístico-processionais, feitos com areia, serragem, sementes e flores.

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Ilustração: Cristo sostenido por dos angeles, de Francisco Ribalta. Reprodução de material de divulgação da exposição Esplendores de Espanha / 2000

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