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Na Semana Santa de São João del-Rei, Encomendação de Almas é lição de vida!


Mistério, segredo, sagrado, ancestral. Este pequeno conjunto de palavras muito bem define o que são
as Encomendações de Almas de São João del-Rei, que acontecem na calada da noite das três primeiras sextas-feiras da Quaresma. Manifestação religioso-cultural única no mundo, por sua ritualidade e musicalidade, as Encomendações de Almas percorrem trajeto definido que prevê paradas, com orações e cânticos, em  cemitérios, portas de igrejas, cruzes, cruzeiros e encruzilhadas do centro histórico e de dois bairros desta cidade mineira, fundada em 1705.
As Encomendações de Almas de São João del-Rei são rituais bicentenários, católicos, promovidos pela Orquestra Lira Sanjoanense, que se corporifica no cortejo com maestro, cantores e instrumentistas (contrabaixo, trompete,  trombone, flauta transversa, clarineta e matraca). Por não ter a presença de sacerdote celebrante, o maestro conduz o rito, fazendo em latim saudações fúnebres próprias e, em português, orações póstumas. Também rege a música barroca - tudo nos sete locais onde o universo dos vivos, em um momento mágico, se conecta com o mundo dos mortos.  Segundo estudiosos, a Orquestra Lira Sanjoanense é a terceira orquestra mais antiga do mundo em atividade ininterrupta. Atuando desde sua fundação, em 1776, até nossos dias. Nas Encomendações, nos grandes intervalos entre um e outro moteto sacro (o cortejo dura cerca de duas horas), os fiéis rezam o terço.
Apesar de repetirem tradição muito antiga, sobretudo no que diz respeito aos trajetos e rituais, as Encomendações de Almas, pela unicidade e imediatismo do momento em que cada vez se realizam, são singulares. Na de sexta-feira, 11/03, os fiéis tiveram que discretamente se esquivar de um pequeno, mas ostensivo despacho, feito pouco mais cedo, furtivamente, no portão do Cemitério das Mercês (rosa vermelha, copo d’água, vela branca). O sino da Matriz batia 23h30.
Três paradas depois, no portão do Cemitério do Rosário, nova surpresa, também a ser falsamente ignorada: desta vez, a oferenda deixada para os mortos era uma bandeja branca, cheinha de quindins, cocadas e outros doces 'regalos'. Teriam religiões de inspiração afro-brasileira chegado mais cedo e feito, antes, sua encomendação de almas?
Mas o inesperado reservava mais. 12/03, 00h15. Ao chegar na parada seguinte, portão da igreja de São Francisco de Assis, a música barroca da Encomendação de Almas se encontrou com o samba. Ali já instalado, um grupo de estudantes de Música da Universidade Federal de São João del-Rei, ainda no embalo do Carnaval, animadamente cantava, com acompanhamento de pandeiro, cavaquinho e tantan. 
 Mineiramente, sacro e profano confabularam ao pé-do-ouvido.  Elegantemente, o samba fez uma pausa, desceu dos degraus, cedeu o palco e, em silêncio, com interesse, ouviu o moteto O vos omnes. Só não aplaudiu no final porque não ficava bem. A circunstância não permitia...
Quanto ensinamento acompanhar uma Encomendação de Almas em São João del-Rei pode nos trazer. Imprevistas e inesquecíveis lições de pluralidade, diversidade, informação, conhecimento, sabedoria, tolerância e convivência pacífica entre diferentes culturas, crenças, convicções e religiões!

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    Serviço   
Outras Encomendações de Almas acontecerão nas próximas sextas-feiras (18 e 25/03), saindo às 23 horas, da porta da Igreja de São José (Tejuco) e do Cemitério do Quicumbi (Bairro das Fábricas)

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