Pular para o conteúdo principal

A sabedoria dos sinos e dos sineiros de São João del-Rei Salomão

Bons ventos sopram sobre São João del-Rei. Por mais que o amor são-joanense chore pelos pedaços da paisagem que se perdeu, clame com bravura pelo que corre risco e vigie, com apaixonado olhar, o tanto de memória que nosso tempo herdou dos séculos passados - e até exatamente como efeito destas três coisas - a cidade vê, a cada instante, seu passado reluzir.

Não o passado que passou, levado pelo tempo, e que agora é só lembrança. Quem reluz é o passado que eternizado ficou e brota a cada geração na alma do povo deste lugar. Se nossa paisagem urbana mostra antigas e recentes cicatrizes inapagáveis que exibem  insensibilidades e ignorâncias, nossas tradições a cada dia se tornam mais fortes, mais ricas, mais singulares e envolventes. Basta assistir a uma das muitas procissões que acontecem o ano inteiro no centro histórico para dissipar qualquer dúvida sobre esta verdade.

Muito ainda há por fazer e por certo muito ainda sempre haverá. Afinal, todos sabemos, o fazer cultural é um movimento que nunca se completa. Verdadeira sina, é um ofício e uma luta que não tem fim. Só acaba quando a cultura, cristalizada, não tiver mais vida nem significado. Daí a paixão que sempre envolve e impulsiona esta causa muitas vezes ferir e maltratar o próprio objeto de amor. Paixão cega desagrega, "descongrega", esquarteja esforços. Tão nefasta é, faz lembrar a falsa mãe que em tempos bíblicos, na disputa de uma criança diante do Rei Salomão, não hesitou em aceitar que a inocente, viva, fosse cortada ao meio, para que ela recebesse a metade.

Enquanto se faz, desfaz ou não se faz, a cultura verdadeira faz-se por si mesma. Senhora de si, segue sábia, livre, autônoma e desimpedida, o seu caminho, resplandecendo majestade. Os sineiros são-joanenses, do alto das torres, dobrando e repicando seus sinos, que o digam...

.....................................................................
Veja, no link abaixo, o documentário Homens da torre, produzido e veiculado pelo Canal Futura. Nele, os sineiros falam, com sentimento e paixão, do ofício a que pertencem, ou com encantamento e saudade, do ofício a que pertenceram.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Debaixo de São João del-Rei, existe uma São João del-Rei subterrânea que ninguém conhece.

Debaixo de São João del-Rei existe uma outra São João del-Rei. Subterrânea, de pedra, cheia de ruas, travessas e becos, abertos por escravos no subsolo são-joanense no século XVIII, ao mesmo tempo em que construíam as igrejas de ouro e as pontes de pedra. A esta cidade ainda ora oculta se chega por 20 betas de grande profundidade, cavadas na rocha terra adentro há certos 300 anos.  Elas se comunicam por meio de longas, estreitas e escuras galerias - veias  e umbigo do ventre mineral de onde se extraíu, durante dois séculos, o metal dourado que valia mais do que o sol. Não se tem notícia de outra cidade de Minas que tenha igual patrimônio debaixo de seu visível patrimônio. Por isto, quando estas betas tiverem sido limpas e tratadas como um bem histórico, darão a São João del-Rei um atrativo turístico que será único, no Brasil e no mundo. Atualmente, uma beta, nas imediações do centro histórico, já pode ser visitada e percorrida. Faltam outras 19, já mapeadas, dependendo da sensi

Em São João del-Rei não se duvida: há 250 anos, Tiradentes bem andou pela Rua da Cachaça...

As ruas do centro histórico de São João del-Rei são tão antigas que muitas delas são citadas em documentos datados das primeiras décadas do século XVIII. Salvo poucas exceções, mantiveram seu traçado original, o que permite compreender como era o centro urbano são-joanense logo que o Arraial Novo de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes tornou-se Vila de São João del-Rei. O Largo do Rosário, por exemplo, atual Praça Embaixador Gastão da Cunha, surgiu antes mesmo de 1719, pois naquele ano foi benta a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, nele situada e que originalmente lhe deu nome. Também neste ano já existia o Largo da Câmara, hoje, Praça Francisco Neves, conforme registro da compra de imóveis naquele local, para abrigar a sede da Câmara de São João del-Rei. A Rua Resende Costa, que liga o Largo do Carmo ao Largo da Cruz, antigamente chamava-se Rua São Miguel e, em 1727, tinha lojas legalizadas, funcionando com autorização fornecida pelo Senado da Câmara daquela Vila colonial.  Por

Padre José Maria Xavier, nascido em São João del-Rei, tinha na testa a estrela da música barroca oitocentista

 Certamente, há quase duzentos anos , ninguém ouviu quando um coro de anjos cantou sobre São João del-Rei. Anunciava que, no dia 23 de agosto de 1819, numa esquina da Rua Santo Antônio, nasceria uma criança mulata, trazendo nas linhas das mãos um destino brilhante: ser um dos grandes - senão o maior - músico colonial mineiro do século XIX . Pouco mais de um mês de nascido, no dia 27 de setembro, (consagrado a São Cosme e São Damião) em cerimônia na Matriz do Pilar, o infante foi batizado com o nome  José Maria Xavier . Ainda na infância, o menino mostrou gosto e vocação para música. Primeiro nos estudos de solfejo, com seu tio, Francisco de Paula Miranda, e, em seguida dominando o violino e o clarinete. Da infância para a adolescência, da música para o estudo das linguas, José Maria aprendeu Latim e Francês, complementando os estudos com História, Geografia e Filosofia. Tão consistente era seu conhecimento que necessitou de apenas um ano para cursar Teologia em Mariana . Assim, j