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Na barroca São João del-Rei, fevereiro é balança de dois pratos: alegria e arrependimento


Em São João del-Rei, fevereiro é um mês que, como nenhum outro, coloca lado a lado o sagrado e o profano, a farra e a penitência. Tão maior o delírio, quão maior o arrependimento. Se não houver um, como  justificar o outro?
Logo que o mês começa, no dia 5, desde a metade do século XVIII a cidade festeja as virtudes de São Gonçalo Garcia. Em sua homenagem, a  Confraria que honra o santo realiza novena barroca, com músicas próprias, compostas pelo Padre José Maria Xavier e executadas pela Orquestra Lira Sanjoanense  - a mais antiga das Américas, em atividade ininterrupta desde sua fundação. Deste repertório sacro fazem parte Veni Sancte Spíritus, Dómine ad adjuvandum, Invícte Martyr e Justus ut Palma florébit. Encerrando a festa religiosa, solene missa cantada, procissão e Te Deum laudamus.
Da festa religiosa para a festa profana, a distância não é maior do que alguns dias.Um pulo e a música barroca dá lugar a sambas, batuques e marchinhas. Em vez de sinos, tambores e tamborins, cornetas, reco-reco e chocalhos. No lugar das flores naturais, flores de plástico e papeis, confetes e serpentinas. Não há cortejos sérios e disciplinados , mas blocos, alas e alegorias. Nada de andores, agora é a vez dos carros alegóricos. Chegou o Carnaval e quem manda é o Rei Momo, com sua  leviana corte de delírio e alegria.
Em São João del-Rei, há dois momentos em que sagrado e profano, próximos, ocupam o mesmo  espaço de tempo. Na terça-feira gorda, enquanto os blocos do dia quebram as esquinas e entortam ladeiras, na Matriz do Pilar fiéis se devotam em piedosa Hora Santa e adorações ao Santíssimo Sacramento. Às nove da noite, quando escolas de samba requebram e repicam meio a casarões dos largos coloniais, das torres imponentes da matriz da majestosa padroeira, o sino da Irmandade do Santíssimo Sacramento, barrocamente profético, lança sobre tudo o sonoro Toque de Cinzas.
Quando a noite vai embora  e o sol chega,  afastando as sombras e iluminando o dia, o tempo muda. O céu fica mais distante, uma névoa discreta ronda a Serra do Lenheiro, espinheiros e quaresmeiras se destacam brancos e roxas nas montanhas, encostas e jardins. Os sinos tocam de tempos em tempos, anunciando que já é quarta-feira de cinzas.
À noite, os são-joanenses vão à missa e via sacra da Boa Morte na Matriz do Pilar. Lá, contritos, oferecem a testa ao padre que faz nela uma cruz de cinzas clamando: "convertei-vos ao Evangelho de Jesus Cristo!"

Como se despedem as pessoas nos últimos momentos da balbúrdia, Carnaval agora só no ano que vem...

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